quinta-feira, 6 de junho de 2013

Thomas Mann


Thomas Mann foi um dos grandes romancistas da primeira metade do século vinte. Para mim A Montanha Mágica é o seu maior romance, embora Doutor Fausto não lhe fique muito atrás; deste último, retirei este excerto, onde é notório e amplo o conhecimento do autor:

«Adrian falava-me do prurido da descoberta que provinha do ensejo para desnudar aos olhares o nunca avistado, o que não cumpre observar e jamais espera ser contemplado. O sentimento de indiscrição e até mesmo pecaminoso, que se lhe ligava a esse acto, não ficava inteiramente tranquilizado ou compensado pela patética reivindicação da Ciência, que pleiteia a autorização para progredir até onde as suas faculdades lhe permitam. Tornava-se por demais evidente que as excentricidades inacreditáveis, ora horripilantes, ora ridículas que a Natureza e a vida haviam perpetrado nessas regiões, com formas e fisionomias já não aparentadas com as do mundo terrestre, e que pareciam pertencer a outro planeta, eram produtos da sua segregação e da certeza d estarem ao abrigo de perene escuridão. A aparição de uma astronave humana em Marte, ou melhor ainda, naquela metade de Mercúrio à qual nunca chega nenhum raio de sol, não poderia causar entre os eventuais habitantes desses mais «próximos» corpos celestes pasmo maior do que aquele que o advento da redoma submersa de Capercailzie ali provocara. Fora indescritível a primeira curiosidade com que as abstrusas criaturas do abismo se haviam comprimido em torno da morada dos visitantes – e igualmente indescritível era tudo quanto deslizava velozmente lá fora, num movimento tão rápido quanto confuso, todas aquelas máscaras loucas, ocultas do mundo orgânico, as bocarras rapaces, as dentaduras sem pudor, os olhos de telescópio, peixes semelhantes a barcos de papel, peixes do feitio de machadas de prata, com vistas protuberantes, dirigidas para cima, bichos pinípedes, moluscos heterópodes que chegavam a ter dois metros de comprimento! Os próprios monstros viscosos que abulicamente flutuavam na corrente, moluscos, polvos, cifomedusas, animais de longos tentáculos, pareciam contagiados pela espasmódica excitação (….)
A transição se lhe tornava fácil graças às descrições precedentes. O ambiente grotescamente estranho da vida no fundo do mar, dessa vida que parecia já não pertencer ao nosso planeta, servia-lhe de ponto de partida. A frase de Klopstock sobre «a gota aderente ao balde» era outro. Com que clareza não ilumina ela, na sua humildade cheia de admiração, a posição secundária, despercebida, quase contraditória para uma visão mais ampla, devido à insignificância do objecto, não só da Terra mas de todo o sistema planetário, do Sol com os seus sete satélites, dentro do turbilhão da Via Láctea, da qual ele faz parte, da «nossa», Via Láctea sem falar, nesta altura, de milhões de outras! A palavra «nossa» confere à imensidão a que se refere um quê de intimidade; engrandece de um modo quase cómico o conceito familiar, dando-lhe uma dimensão estonteante, da qual modesta mas seguramente amparados nos devemos sentir cidadãos. Nessa preservação intrínseca, parece afirmar-se a predilecção da Natureza pela esfericidade, e este era o terceiro ponto do qual partia Adrian ao iniciar as suas condições cósmicas. Em certo sentido, levou-o a isso a estranha experiência da sua estada numa bola oca, com o batíscafo de Capercailzie, que ele pretendia ter habitado durante várias horas. Depois, aprendera que nós todos vivemos sempre numa esfera semelhante, pois a condição do espaço galáctico, onde nos foi consignado um minúsculo lugarzinho em qualquer região lateral, é a seguinte:
Explicou-me que esse espaço tem, pouco mais ou menos, a forma de um achatado relógio de algibeira: é redondo e muito menos espesso do que vasto; um disco em turbilhão, não incomensurável, mas decerto enorme, constituído por concentradas multidões de corpos celestes, constelações, agrupamentos e montões de astros, estrelas duplas, que descrevem órbitas elípticas, uma em torno da outra, além de inúmeras manchas nebulosas, algumas anulares, outras fosforescentes e ainda outras difusas. Mas, segundo Adrian, tal disco parecia-se apenas com a superfície plana, redonda, que se obteria se cortássemos uma laranja pelo meio. Pois, ao seu redor, era envolvido por um manto vaporoso de outros astros, que, por sua vez, não devia ser qualificado como incomensurável, mas apenas enorme, à mais alta potência, e em cujos espaços – espaços predominantemente vazios – os objectos presentes estariam distribuídos de tal forma que toa a estrutura teria o feitio de uma esfera. Nas profundezas do interior dessa bola oca, inconcebivelmente espaçosa, pertencente ao disco do condensado formigueiro universal encontra-se, totalmente secundária, dificilmente descortinável, nem sequer digna de menção, a estrela fixa, em volta da qual brincam na companhia de camaradas maiores e menores, a Terra e a sua pequena lua. «O Sol», que merece em absoluto o artigo definido, uma bola gasosa de seis mil graus de calor, na sua superfície, e de um diâmetro módico de um milhão e meio de quilómetros, dista do centro do plano interior galáctico de uns trinta mil anos-luz, distância essa igual à grossura do mesmo.
A minha cultura geral permitia-me fazer uma ideia aproximada do conceito de um «ano-luz». Era, obviamente, um conceito espacial, e a palavra designada o trajecto que a luz percorre durante um ano terrestre – com a velocidade que lhe é peculiar e da qual eu tinha conhecimentos vagos, mas que Adrian sabia precisar exactamente: duzentos e noventa e sete mil e seiscentos quilómetros por segundo. Sendo assim, um ano-luz chegaria a cerca de nove e meio de triliões de quilómetros, de modo que a excentricidade do nosso sistema solar perfaria trinta mil vezes mais e o diâmetro total da esfera galáctica mediria duzentos mil anos-luz.
Não, ele não era incomensurável e, dessa forma podia ser medido. E no entanto, que se deve dizer de tal incumbência imposta à inteligência humana? Confesso que, por índole, aquilo que é irrealizável e muito imponente apenas me leva a encolher os ombros em sinal de renúncia, mas também de certo desdém. A admiração da grandeza, o entusiasmo que sentimos em face dela e até por arrebatamento irreversível que ela nos causa criam, sem dúvida alguma, um prazer da alma. Mas somente podem ocorrer sob condições concebíveis, terrenas e humanas. As pirâmides são grandes; grande é o monte Branco, e o interior da catedral de São Pedro também o é, a não ser que se prefira reservar esse atributo ao mundo moral e espiritual, ao sublime do coração e do pensamento (…)
O universo físico – a palavra «universo» na sua acepção mais vasta, a englobar as regiões mais distantes – não devia ser considerado nem infinito, porquanto ambos os termos designam algo virtualmente estático, ao passo que o cosmo, na realidade, é por índole inteiramente dinâmico e, havia muito, ou para sermos mais exactos, há mil e novecentos milhões de anos, encontra-se em estado de frenética expansão, ou mais precisamente de explosão. A esse respeito, o desvio para o vermelho na luz chegada até nós de numerosos sistemas galácticos, cuja distância conhecemos pouco mais ou menos, não admitia, segundo o meu amigo, nenhuma dúvida. Em direcção à extremidade do vermelha no espectro, a alteração da cor tornava-se, como expunha, tanto mais sensível quanto mais afastadas de nós estivessem aquelas nebulosas. Evidentemente, elas tendiam a fugir de nós, e nas mais remotas aglomerações, situadas a cerca de cento e cinquenta milhões de anos-luz, a velocidade do seu movimento equivalia àquela que desenvolvem as partículas alfa de substâncias radioactivas e que chega a vinte e cinco mil quilómetros por segundo, uma velocidade em comparação com a qual o voo dos estilhaços causados pela explosão de uma granada parece o avanço de uma lesma. Se, portanto, todos os sistemas da via Láctea se distanciavam uns dos outros com a máxima rapidez, o termo «explosão» era pouco adequado ou nem bastava sequer para descrever o estado do modelo atómico e a sua forma de dimensão. Podia ser que esta, outrora, tenha sido estática, limitando-se simplesmente a um diâmetro de um bilião de anos-luz. Mas, na situação actua, talvez fosse possível falar de expansão, mas nunca de uma dimensão fixa, quer «finita», quer «infinita». Tive a impressão de que tudo o que Capercailzie fora capaz de garantir ao interlocutor curioso se restringia ao facto de que a soma de todos os sistemas existentes da Via Láctea alcançava a ordem de grandeza de cem biliões., dos quais apenas um mísero milhão era avistado pelos telescópios que actualmente temos à nossa disposição.»

Notas:
Klopstock – poeta germânico
Capercailzie – professor de Adrian
Thomas Mann




Thomas Mann foi um dos grandes romancistas da primeira metade do século vinte. Para mim A Montanha Mágica é o seu maior romance, embora Doutor Fausto não lhe fique muito atrás; deste último, retirei este excerto, onde é notório e amplo o conhecimento do autor:

«Adrian falava-me do prurido da descoberta que provinha do ensejo para desnudar aos olhares o nunca avistado, o que não cumpre observar e jamais espera ser contemplado. O sentimento de indiscrição e até mesmo pecaminoso, que se lhe ligava a esse acto, não ficava inteiramente tranquilizado ou compensado pela patética reivindicação da Ciência, que pleiteia a autorização para progredir até onde as suas faculdades lhe permitam. Tornava-se por demais evidente que as excentricidades inacreditáveis, ora horripilantes, ora ridículas que a Natureza e a vida haviam perpetrado nessas regiões, com formas e fisionomias já não aparentadas com as do mundo terrestre, e que pareciam pertencer a outro planeta, eram produtos da sua segregação e da certeza d estarem ao abrigo de perene escuridão. A aparição de uma astronave humana em Marte, ou melhor ainda, naquela metade de Mercúrio à qual nunca chega nenhum raio de sol, não poderia causar entre os eventuais habitantes desses mais «próximos» corpos celestes pasmo maior do que aquele que o advento da redoma submersa de Capercailzie ali provocara. Fora indescritível a primeira curiosidade com que as abstrusas criaturas do abismo se haviam comprimido em torno da morada dos visitantes – e igualmente indescritível era tudo quanto deslizava velozmente lá fora, num movimento tão rápido quanto confuso, todas aquelas máscaras loucas, ocultas do mundo orgânico, as bocarras rapaces, as dentaduras sem pudor, os olhos de telescópio, peixes semelhantes a barcos de papel, peixes do feitio de machadas de prata, com vistas protuberantes, dirigidas para cima, bichos pinípedes, moluscos heterópodes que chegavam a ter dois metros de comprimento! Os próprios monstros viscosos que abulicamente flutuavam na corrente, moluscos, polvos, cifomedusas, animais de longos tentáculos, pareciam contagiados pela espasmódica excitação (….)
A transição se lhe tornava fácil graças às descrições precedentes. O ambiente grotescamente estranho da vida no fundo do mar, dessa vida que parecia já não pertencer ao nosso planeta, servia-lhe de ponto de partida. A frase de Klopstock sobre «a gota aderente ao balde» era outro. Com que clareza não ilumina ela, na sua humildade cheia de admiração, a posição secundária, despercebida, quase contraditória para uma visão mais ampla, devido à insignificância do objecto, não só da Terra mas de todo o sistema planetário, do Sol com os seus sete satélites, dentro do turbilhão da Via Láctea, da qual ele faz parte, da «nossa», Via Láctea sem falar, nesta altura, de milhões de outras! A palavra «nossa» confere à imensidão a que se refere um quê de intimidade; engrandece de um modo quase cómico o conceito familiar, dando-lhe uma dimensão estonteante, da qual modesta mas seguramente amparados nos devemos sentir cidadãos. Nessa preservação intrínseca, parece afirmar-se a predilecção da Natureza pela esfericidade, e este era o terceiro ponto do qual partia Adrian ao iniciar as suas condições cósmicas. Em certo sentido, levou-o a isso a estranha experiência da sua estada numa bola oca, com o batíscafo de Capercailzie, que ele pretendia ter habitado durante várias horas. Depois, aprendera que nós todos vivemos sempre numa esfera semelhante, pois a condição do espaço galáctico, onde nos foi consignado um minúsculo lugarzinho em qualquer região lateral, é a seguinte:
Explicou-me que esse espaço tem, pouco mais ou menos, a forma de um achatado relógio de algibeira: é redondo e muito menos espesso do que vasto; um disco em turbilhão, não incomensurável, mas decerto enorme, constituído por concentradas multidões de corpos celestes, constelações, agrupamentos e montões de astros, estrelas duplas, que descrevem órbitas elípticas, uma em torno da outra, além de inúmeras manchas nebulosas, algumas anulares, outras fosforescentes e ainda outras difusas. Mas, segundo Adrian, tal disco parecia-se apenas com a superfície plana, redonda, que se obteria se cortássemos uma laranja pelo meio. Pois, ao seu redor, era envolvido por um manto vaporoso de outros astros, que, por sua vez, não devia ser qualificado como incomensurável, mas apenas enorme, à mais alta potência, e em cujos espaços – espaços predominantemente vazios – os objectos presentes estariam distribuídos de tal forma que toa a estrutura teria o feitio de uma esfera. Nas profundezas do interior dessa bola oca, inconcebivelmente espaçosa, pertencente ao disco do condensado formigueiro universal encontra-se, totalmente secundária, dificilmente descortinável, nem sequer digna de menção, a estrela fixa, em volta da qual brincam na companhia de camaradas maiores e menores, a Terra e a sua pequena lua. «O Sol», que merece em absoluto o artigo definido, uma bola gasosa de seis mil graus de calor, na sua superfície, e de um diâmetro módico de um milhão e meio de quilómetros, dista do centro do plano interior galáctico de uns trinta mil anos-luz, distância essa igual à grossura do mesmo.
A minha cultura geral permitia-me fazer uma ideia aproximada do conceito de um «ano-luz». Era, obviamente, um conceito espacial, e a palavra designada o trajecto que a luz percorre durante um ano terrestre – com a velocidade que lhe é peculiar e da qual eu tinha conhecimentos vagos, mas que Adrian sabia precisar exactamente: duzentos e noventa e sete mil e seiscentos quilómetros por segundo. Sendo assim, um ano-luz chegaria a cerca de nove e meio de triliões de quilómetros, de modo que a excentricidade do nosso sistema solar perfaria trinta mil vezes mais e o diâmetro total da esfera galáctica mediria duzentos mil anos-luz.
Não, ele não era incomensurável e, dessa forma podia ser medido. E no entanto, que se deve dizer de tal incumbência imposta à inteligência humana? Confesso que, por índole, aquilo que é irrealizável e muito imponente apenas me leva a encolher os ombros em sinal de renúncia, mas também de certo desdém. A admiração da grandeza, o entusiasmo que sentimos em face dela e até por arrebatamento irreversível que ela nos causa criam, sem dúvida alguma, um prazer da alma. Mas somente podem ocorrer sob condições concebíveis, terrenas e humanas. As pirâmides são grandes; grande é o monte Branco, e o interior da catedral de São Pedro também o é, a não ser que se prefira reservar esse atributo ao mundo moral e espiritual, ao sublime do coração e do pensamento (…)
O universo físico – a palavra «universo» na sua acepção mais vasta, a englobar as regiões mais distantes – não devia ser considerado nem infinito, porquanto ambos os termos designam algo virtualmente estático, ao passo que o cosmo, na realidade, é por índole inteiramente dinâmico e, havia muito, ou para sermos mais exactos, há mil e novecentos milhões de anos, encontra-se em estado de frenética expansão, ou mais precisamente de explosão. A esse respeito, o desvio para o vermelho na luz chegada até nós de numerosos sistemas galácticos, cuja distância conhecemos pouco mais ou menos, não admitia, segundo o meu amigo, nenhuma dúvida. Em direcção à extremidade do vermelha no espectro, a alteração da cor tornava-se, como expunha, tanto mais sensível quanto mais afastadas de nós estivessem aquelas nebulosas. Evidentemente, elas tendiam a fugir de nós, e nas mais remotas aglomerações, situadas a cerca de cento e cinquenta milhões de anos-luz, a velocidade do seu movimento equivalia àquela que desenvolvem as partículas alfa de substâncias radioactivas e que chega a vinte e cinco mil quilómetros por segundo, uma velocidade em comparação com a qual o voo dos estilhaços causados pela explosão de uma granada parece o avanço de uma lesma. Se, portanto, todos os sistemas da via Láctea se distanciavam uns dos outros com a máxima rapidez, o termo «explosão» era pouco adequado ou nem bastava sequer para descrever o estado do modelo atómico e a sua forma de dimensão. Podia ser que esta, outrora, tenha sido estática, limitando-se simplesmente a um diâmetro de um bilião de anos-luz. Mas, na situação actua, talvez fosse possível falar de expansão, mas nunca de uma dimensão fixa, quer «finita», quer «infinita». Tive a impressão de que tudo o que Capercailzie fora capaz de garantir ao interlocutor curioso se restringia ao facto de que a soma de todos os sistemas existentes da Via Láctea alcançava a ordem de grandeza de cem biliões., dos quais apenas um mísero milhão era avistado pelos telescópios que actualmente temos à nossa disposição.»

Notas:
Klopstock – poeta germânico
Capercailzie – professor de Adrian

quarta-feira, 5 de junho de 2013


Lillian Gish  

 



Este filme é do melhor que vi. Sou atávico e continuo a rever filmes a preto e branco, e silenciosos. A menina Gish foi uma grande actriz.

The Wind de Victor Sjöström (Sinopse):
 
 
 


 

 

 

 

terça-feira, 21 de maio de 2013


 
 
O Pequeno Mundo
          

 


 
 
 
Por vezes, nos romances, surgem reflexões sobre as leis da física e surgem referências a físicos.

 
Em “O Pequeno Mundo” de Luísa Costa Gomes - romance que se desenrola através de missivas escritas entre as personagens- às páginas tantas, Leonardo escreve                   ao amigo João Manuel:

 
«Por isto, já vês, não foi a morte de Camila que me assustou mas o aperceber-me, a súbitas, no que me tinha tornado; rompendo através das gordurosas do corpo os untos diversos que me corriam no cérebro, tinha que, em vez das lubrificações aéreas que eu antecipara, me apatizavam os cada vez mais ralos pensamentos de um espírito que padecia de boa-vontade e colaborativo na correnteza dela, os mortais empuxões da inércia. Que é, se bem te lembras, a lei mais funda de toda a realidade. Deixando-me levar pela correnteza dela, havia de estar hoje sentado com Esmeralda a fazer meia e a conversar do tempo frutuoso das colheitas do ano passado»

A lei da inércia aparece a Leonardo como intangível e como o estado deste mundo - isto apesar de o pequeno mundo continuar acelerado.


A estrutura e até a moral de “O Pequeno Mundo” são análogas ao romance “Boquitas Pintadas” do argentino Manuel Puig - salvo que o primeiro é dominado por relações amorosas e traições, enquanto o segundo é dominado pela denúncia, por parte de um jornalista, da hipotética corrupção de um caudilho –, ambos se baseiam em epístolas e dão a imagem de um mundo sem ética, regido pela astúcia e perpassado de traições, de hipocrisia, de desejos de poder e de corrupção.

 
João Miguel chega a escrever a Manuela:

 
«Leonardo transformou-se num socialista utópico pós-catastrofista, o que, se considerarmos o processo todo com olho equânime, é um passo adiante daquelas ideias do século ΧІΧ conservador que sempre defendeu. Não perco a fé em vê-lo transitar um dia para o socialismo científico e depois à social-democracia, para se afogar nos títulos e nas acções e ir para Lisboa gesticular na Bolsa, refazendo em si mesmo o percurso da própria História.»

 
Esta última etapa da história é inegavelmente a que estamos agora a viver.

No término do romance Manuela escreve este episódio maravilhoso, que desconhecia, sobre Arquimedes:


«Noli turbare círculos meos, disse ele que parece que foi a forma de Arquimedes pedir a quem o vinha matar que lhe não pisasse as figuras que ele tinha desenhado na areia.»


De facto apagar a obra de um génio é um crime, e o actual governo de Portugal e o Presidente da República não têm feito outra coisa se não apunhalar a cultura e, por arrasto, a obra dos génios. Tudo o que peço a estes senhores é que tenham um pouco de atenção e poupem os círculos na areia, uma vez que a sua sede de extermínio da cultura é imparável. Contra a opinião de muitos cronistas, eu considero que a omissão do nome de José Saramago na Colômbia, por parte do senhor Presidente da República, foi propositada e vergonhosa. Mais, este senhor deveria ser obrigado a ler o único Nobel da literatura portuguesa, porque foi um prémio justo e não obra do céu. É verdade que as aparições deixam os portugueses a ver apenas branco, uma vez que são inexplicáveis, e que se perpetuam pelo tempo afora; agora esta de misturar Religião com Euros é de quem anda completamente perdido.
 Não fugindo deste pequeno mundo, já vejo o senhor Cavaco Silva em peregrinação para Fátima com o actual treinador do Porto, levando algumas vitaminas na sacola, e a recitarem o Evangelho pelo caminho.

O romance acaba com uma carta de João Miguel a Leonardo:

«Duvido que voltemos a falar-nos. Lembras-me um dito do tutor de Stendhal                 – perdoa-me esta anedota – a quem perguntavam por que ensinava ele ainda o sistema ptolomaico, sabendo-o falso. «Senhor», respondeu o sábio, «ele explica tudo o que é preciso e ainda por cima tem a aprovação da Igreja.» É assim que eu te vejo, fincado no teu sistema ptolomaico, nem que para isso tenhas de ir espezinhando quem não te inclui no arranjo das coisas.»

É no sistema hodierno de Copérnico que os portugueses vivem divididos, porque uns se recusam a ver os seus falhanços, enquanto outros se esquivam das suas responsabilidades na crise actual. E, deste modo, tenho que revezar a imagem de José Sócrates com a de M. Rebelo de Sousa no meu televisor, e ficar com os cabelos dos braços arrepiados face à comiseração e ao catolicismo do senhor Paulo Portas.

Para mim é evidente que o neo-liberalismo é a máscara do fascismo e que o socialismo português rasgou todos os seus valores e aplicou os do neo-liberalismo. Assim, estamos prestes a regressar ao Estado Novo. Empobrecer o todo para depois, faminto e em desespero, suar de sol a Sol para o senhor da espreguiçadeira.

 

 

 

 

 

 

 

 

segunda-feira, 13 de maio de 2013


 

Dívida Nacional 

A dívida do meu país foi uma pêra que cresceu do pedúnculo até à terra.

Com a árvore à vista, apanhámos uma grande pêra!

PÊRA PENDENTE

A
P
Ê
R
A
ESTÁ
SUSPENSA
E CRESCE ATÉ À
TERRA A PÊRA ESTÁ
SUSPENSA E CRESCE ATÉ À
TERRA A PÊRA ESTÁ SUSPENSA
E CRESCE ATÉ À TERRA A PÊRA
ESTÁ SUSPENSA E CRESCE ATÉ À
       TERRA A PÊRA ESTÁ SUSPENSA E
CRESCE ATÉ À TERRA A PÊRA ESTÁ
SUSPENSA E CRESCE ATÉ À TERRA
A PÊRA ESTÁ SUSPENSA E CRESCE
ATÉ À TERRA A PÊRA ESTÁ
SUSPENSA E CRESCE ATÉ
À TERRA A PÊRA ESTÁ
SUSPENSA E CRESCE
ATÉ À TERRA
……………………………………………………………………

 

 

 

terça-feira, 19 de março de 2013


NUNCA MAIS

 

A investigação sobre os crimes da ditadura militar de J. Videla, que chefiou os destinos da Argentina entre 1976 e 1983, esteve a cargo da Comissão Nacional Sobre O Desaparecimento De Pessoas (CONADEP), chefiada pelo físico e escritor, Ernesto Sábato. As 50 mil páginas de depoimentos, não deixam dúvidas quanto à barbaridade da ditadura: trinta mil mortos, trezentos e quarenta campos de concentração e nove mil desaparecidos. A comissão resume desta maneira o que foi a crueldade da ditadura:
«As grandes calamidades sempre geram lições e, sem dúvida o drama mais terrível que a Nação sofreu em toda a sua história servirá para compreendermos que só a democracia é capaz de preservar o povo de tal iniquidade; que somente ela pode manter e salvar os sagrados e essenciais direitos da criatura humana. Só assim poderemos ter certeza de que NUNCA MAIS em nossa pátria acontecerão os factos que nos fizeram tragicamente famosos no mundo civilizado.»
Em um país, que até há pouco tempo entre nós era considerado um país do terceiro mundo, houve coragem para se elaborar um relatório desta natureza. No meu país, todavia, faltou denodo à democracia para investigar os crimes cometidos durante as várias décadas de fascismo. É hábito latino passar uma esponja pelo passado, e deixar que caudilhos, com rosto de democrata, envolvidos em escândalos, em corrupção e até em assassínios, regressem à cena política e mediática. A eleição de S. Berlusconi para o governo italiano e a impunidade, em Portugal, de eminentes historiadores e escritores envolvidos na ditadura do estado novo, são dois exemplos flagrantes; depois do 25 de Abril, estes historiadores e escritores, continuaram alegremente nas suas funções, e perpetuaram-se pelos jornais diários como cronistas. Esta leviandade permitiu que Sá – Carneiro fosse primeiro-ministro, apesar das suas ligações ao fascismo, e que espalhasse pelo país um mundo onírico, mundo no qual que estamos prestes a entrar: o regresso ao fascismo.
A igreja católica foi também um dos pilares do estado novo, e alguns senhores ainda hoje se recusam a ver o evidente, e até negam o seu envolvimento com a ditadura. O perdão em mim tem limites, e não posso conceder indulto a senhores que de forma consciente permitiram que milhares de pessoas neste país morressem tuberculosas. Quando reverenciamos criminosos, é porque os aceitamos, quando nos entregamos ao mutismo, é porque aceitamos. A união europeia está a caminhar a passo estugado para o fascismo, e a igreja, estultamente, adiantou-se e resolveu eleger para o pontificado um senhor com um passado nebuloso e de complacência com o regime de J. Videla (isto para muitos argentinos). Para que não restem dúvidas sobre a posição pendular da igreja temos que ler o relatório de Sábato:
«1-Sobre atitudes de alguns membros da Igreja
O episcopado Argentino condenou reiteradamente a modalidade repressiva que esta comissão investigou. Não haviam transcorrido dois meses após o golpe de 24 de Março de 1976 quando a Conferência Episcopal, em assembleia-geral, qualificou de “pecado” os métodos empregados. Em Maio de 1977 publicou, no mesmo sentido, um severo documento precedido de comunicações aos membros da junta militar.
Lamentavelmente houve membros do clero que cometeram ou avaliaram, com sua presença, com seu silêncio e até com palavras justificativas, estes mesmos factos que haviam sido condenados pelo Episcopado.»
É neste último parágrafo que muitos argentinos e a senhora presidente Kirchner incluem o Papa Francisco. E não é o subterfúgio da igreja, dita universal, de que a suspeita e a calúnia vem de grupos de extrema-esquerda, que apaga o passado de Bergoglio. Tem que ser o próprio, em nome da verdade, a explicar a sua posição.
No relatório estão vários depoimentos contra padres que rezam factos impensáveis:
«…Também ouvi-o defender e justificar as torturas …» (Depoimento de Luis Velasco)
«…Esclarece que Videla foi a alma caridosa que elaborou este plano para não perder as inteligências…diz que os jovens são atendidos por psicólogos e sociólogos, que há equipas médicas para a saúde e que, aos irrecuperáveis, é possível que alguém piedoso lhe dê uma injecção e o irrecuperável adormece para sempre…» (Denúncia apresentada pelo desaparecimento de Carlos Óscar Lorenzo)
«…mostrou-nos uma lista com muitos nomes e disse-nos que nos fixássemos no nome de nosso filho; aqueles que tinham uma cruz queria dizer que estavam mortos, se não, que estavam vivos…» (Denúncia de Adelina Burgos de Di Spalatro)
Os depoimentos e as denúncias, não deixam margem para conjecturas hipotéticas. A igreja católica argentina, para além de compactuar com a ditadura, foi cínica e hipócrita.
Agora espero que o Papa esclarece a sua posição e que siga os passos de S. Francisco de Assis, porque a nuvem que paira sobre ele pode bem ser um céu sombrio. Sugiro também que não defenestre poeira para os olhos dos cristãos, com o seu franciscanismo. Uma coisa é sentir o sofrimento na pele, como o sente hoje o presidente Cavaco Silva, e outra, bem diferente, é a verborreia para iludir o povo. Por fim, recomendo, a sua santidade, a leitura da biografia do santo, escrita por G. K. Chesterton.